“Não é preciso contar, porque a verdade do que se conta está no modo como se é..." O Leitor de Bernhard Schlink
28/11/2012
26/11/2012
25/11/2012
22/11/2012
20/11/2012
A arte de ser avó - Rachel de Queiroz
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Fortunata Alves dos Santos (minha avó) |
Quarenta anos, quarenta e cinco. Você sente, obscuramente, nos seus
ossos, que o tempo passou mais depressa do que esperava. Não lhe incomoda
envelhecer, é claro. A velhice tem suas alegrias, as sua compensações
- todos dizem isso, embora você pessoalmente, ainda não as tenha descoberto
- mas acredita.
Todavia, também obscuramente, também sentida nos seus ossos, às
vezes lhe dá aquela nostalgia da mocidade.
Não de amores nem de paixão; a doçura da meia-idade não lhe exige
essas efervescências. A saudade é de alguma coisa que você tinha e
lhe fugiu sutilmente junto com a mocidade. Bracinhos de criança no
seu pescoço. Choro de criança. O tumulto da presença infantil ao seu
redor. Meu Deus, para onde foram as suas crianças? Naqueles adultos
cheios de problemas, que hoje são seus filhos, que têm sogro e sogra,
cônjuge, emprego, apartamento e prestações, você não encontra de modo
algum as suas crianças perdidas. São homens e mulheres - não são mais
aqueles que você recorda.
E então, um belo dia, sem que lhe fosse imposta nenhuma das agonias
da gestação ou do parto, o doutor lhe põe nos braços um menino. Completamente
grátis - nisso é que está a maravilha. Sem dores, sem choro, aquela
criancinha da sua raça, da qual você morria de saudades, símbolo ou
penhor da mocidade perdida. Pois aquela criancinha, longe de ser um
estranho, é um menino que se lhe é "devolvido". E o espantoso é que
todos lhe reconhecem o seu direito sobre ele, ou pelo menos o seu
direito de o amar com extravagância; ao contrário, causaria escândalo
ou decepção, se você não o acolhesse imediatamente com todo aquele
amor que há anos se acumulava, desdenhado, no seu coração.
Sim, tenho a certeza de que a vida nos dá os netos para nos compensar
de todas as mutilações trazidas pela velhice. São amores novos, profundos
e felizes, que vêm ocupar aquele lugar vazio, nostálgico, deixado
pelos arroubos juvenis.
Aliás, desconfio muito de que netos são melhores que namorados,
pois que as violências da mocidade produzem mais lágrimas do que enlevos.
Se o Doutor Fausto fosse avô, trocaria calmamente dez Margaridas por
um neto...
No entanto! Nem tudo são flores no caminho da avó. Há, acima de
tudo, o entrave maior, a grande rival: a mãe. Não importa que ela,
em si, seja sua filha. Não deixa por isso de ser a mãe do neto. Não
importa que ela hipocritamente, ensine a criança a lhe dar beijos
e a lhe chamar de "vovozinha" e lhe conte que de noite, às vezes,
ele de repente acorda e pergunta por você. São lisonjas, nada mais.
No fundo ela é rival mesmo. Rigorosamente, nas suas posições respectivas,
a mãe e a avó representam, em relação ao neto, papéis muito semelhantes
ao da esposa e da amante nos triângulos conjugais. A mãe tem todas
as vantagens da domesticidade e da presença constante. Dorme com ele,
dá-lhe banho, veste-o, embala-o de noite. Contra si tem a fadiga da
rotina, a obrigação de educar e o ônus de castigar.
Já a avó não tem direitos legais, mas oferece a sedução do romance
e do imprevisto. Mora em outra casa. Traz presentes. Faz coisas não
programadas. Leva a passear, "não ralha nunca". Deixa lambuzar de
pirulito. Não tem a menor pretensão pedagógica. É a confidente das
horas de ressentimento, o último recurso dos momentos de opressão,
a secreta aliada nas crises de rebeldia. Uma noite passada em sua
casa é uma deliciosa fuga à rotina, tem todos os encantos de uma aventura.
Lá não há linha divisória entre o proibido e o permitido, antes uma
maravilhosa subversão da disciplina. Dormir sem lavar as mãos, recusar
a sopa e comer croquetes, tomar café, mexer na louça, fazer trem com
as cadeiras na sala, destruir revistas, derramar água no gato, acender
e apagar a luz elétrica mil vezes se quiser - e até fingir que está
discando o telefone. Riscar a parede com lápis dizendo que foi sem
querer - e ser acreditado!
Fazer má-criação aos gritos e em vez de apanhar ir para os braços
do avô, e lá escutar os debates sobre os perigos e os erros da educação
moderna...
Sabe-se que, no reino dos céus, o cristão defunto desfruta os mais
requintados prazeres da alma. Porém não estarão muito acima da alegria
de sair de mãos dadas com o seu neto, numa manhã de sol. E olhe que
aqui embaixo você ainda tem o direito de sentir orgulho, que aos bem-aventurados
será defeso. Meu Deus, o olhar das outras avós com seus filhotes magricelas
ou obesos, a morrerem de inveja do seu maravilhoso neto!
E quando você vai embalar o neto e ele, tonto de sono, abre um olho,
lhe reconhece, sorri e diz "Vó", seu coração estala de felicidade,
como pão ao forno.
E o misterioso entendimento que há entre avó e neto, na hora em
que a mãe castiga, e ele olha para você, sabendo que, se você não
ousa intervir abertamente, pelo menos lhe dá sua incondicional cumplicidade.
Até as coisas negativas se viram em alegrias quando se intrometem
entre avó e neto: o bibelô de estimação que se quebrou porque o menino
- involuntariamente! - bateu com a bola nele. Está quebrado e remendado,
mas enriquecido com preciosas recordações: os cacos na mãozinha, os
olhos arregalados, o beicinho pronto para o choro; e depois o sorriso
malandro e aliviado porque "ninguém" se zangou, o culpado foi a bola
mesma, não foi, vó? Era um simples boneco que custou caro. Hoje é
relíquia: não tem dinheiro que pague.
(O brasileiro perplexo, 1964)
(O brasileiro perplexo, 1964)
À minha avó...
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Fortunata Alves dos Santos (minha avó) |
18/11/2012
Envelhecer - Rubem Alves
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Imagem Web |
Vá um homem envelhecendo, e caia na tolice de pensar que envelhece por inteiro - famosa tolice. Alguém já notou: envelhecemos nisto, naquilo; este trecho ainda é verde, aquele outro já apodrece; aqui há seiva estuando, além é coisa murcha.
A infância não volta, mas não vai - fica recolhida, como se diz de certas doenças. Pode dar um acesso. Outro dia sofri um ataque não de infância, mas de adolescência: precipitei-me célebre, árdego, confuso. Meus olhos estavam úmidos e ardiam; mãos trêmulas; os demônios me apertavam a garganta; eu me sentia inibido, mas agia com estranha velocidade por fora. Exatamente o contrário do que convém a um senhor de minha idade e condição. Pior é ataque de infância: o respeitável cavalheiro de repente começa a agir como um menino bobo. Será que só eu sou assim, ou os outros disfaçam melhor?
(Recado de Primavera)
Acorrentados - Paulo Mendes Campos
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Imagem Web |
"O Anjo Bêbado", Editora Sabiá - Rio de Janeiro, 1969, p. 105.
17/11/2012
José Saramago fala sobre a mágica do sorriso; a força do sorriso...
"Sorriso, diz-me aqui o dicionário, é o acto
de sorrir. E sorrir é rir sem fazer ruído e executando contracção
muscular da boca e dos olhos.
O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
O sorriso, meus amigos, é muito mais do que estas pobres definições, e eu pasmo ao imaginar o autor do dicionário no acto de escrever o seu verbete, assim a frio, como se nunca tivesse sorrido na vida. Por aqui se vê até que ponto o que as pessoas fazem pode diferir do que dizem. Caio em completo devaneio e ponho-me a sonhar um dicionário que desse precisamente, exactamente, o sentido das palavras e transformasse em fio-de-prumo a rede em que, na prática de todos os dias, elas nos envolvem.
Não há dois sorrisos iguais. Temos o sorriso de
troça, o sorriso superior e o seu contrário humilde, o de ternura, o de
cepticismo, o amargo e o irônico, o sorriso de esperança, o de
condescendência, o deslumbrado, o de embaraço, e (por que não?) o de
quem morre. E há muitos mais. Mas nenhum deles é o Sorriso.
O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frêmito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso."
O Sorriso (este, com maiúsculas) vem sempre de longe. É a manifestação de uma sabedoria profunda, não tem nada que ver com as contracções musculares e não cabe numa definição de dicionário. Principia por um leve mover de rosto, às vezes hesitante, por um frêmito interior que nasce nas mais secretas camadas do ser. Se move músculos é porque não tem outra maneira de exprimir-se. Mas não terá? Não conhecemos nós sorrisos que são rápidos clarões, como esse brilho súbito e inexplicável que soltam os peixes nas águas fundas? Quando a luz do sol passa sobre os campos ao sabor do vento e da nuvem, que foi que na terra se moveu? E contudo era um sorriso."
Texto retirado da página "Viciados em livros" no Facebook
16/11/2012
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia - Marina Colasanti
A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista
que não as janelas ao redor. E porque não tem vista, a gente logo se acostuma a
não olhar para fora. E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir
de todo as cortinas. E porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender
mais cedo à luz. E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar,
esquece a amplidão. A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque
está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é
noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia. A gente se acostuma a
esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as
pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto. A gente se acostuma a pagar
por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro
com que pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez
pagará mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter
com que pagar nas filas em que se cobra. A gente se acostuma à poluição. Às
salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de
ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. A gente se acostuma a coisas demais, para não
sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui,
um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se
o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no
fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica
satisfeito porque tem sempre sono atrasado. A gente se acostuma para não se
ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas,
sangramentos, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que
aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto se acostumar, e se perde de si
mesma. A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e
ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e
engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos
produtos.
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